sábado, 13 de junho de 2009

Driblar, tocar e pensar


por Michelle Amaral da Silva

Antropólogo explica como o movimento Democracia Corinthiana refletiu e colaborou na construção de uma corrente de pensamento popular de uma época

Eduardo Sales de Lima

da Reportagem

Em 1964, o então presidente do Corinthians, Wadih Helu, celebrava, em reunião do Conselho Deliberativo, “um voto de júbilo” pela “desassombrada e patriótica tomada de posição de nossas Forças Armadas”. A partir dessa data, José Paulo Florenzano, autor do livro recém-lançado “A Democracia Corinthiana – práticas de liberdade no futebol brasileiro”, percorre a história da sociedade brasileira tendo o futebol como o espelho de experiências libertárias e democráticas no país, e, talvez mais que isso, abordando-o como o centro da cultura nacional.

Florenzano é antropólogo e... palmeirense. Tal condição, segundo ele, auxiliou-o em relação ao “distanciamento crítico” do objeto de estudo. Uma das ideias principais da obra é retratar que a luta pela liberdade dos jogadores dentro da ditadura civil-militar “difundia-se por entre os coletivos de atletas e se interligava e nutria com os embates travados nas fábricas, nos sindicatos, nas igrejas, nas favelas, enfim, nas diversas esferas da vida social”, diz trecho do livro.

Vem, então, a Democracia Corinthiana (1981-1985), que aprofunda experiências de autogestão entre os jogadores, como a ocorrida no seio da seleção brasileira tricampeã de 1970. Os atletas passam a governar a equipe, e a resolução de questões comuns do clube, como a escolha do técnico, da estratégia de jogo do time, da contratação e da dispensa dos integrantes do elenco, das normas disciplinares, e até o engajamento nas questões sociais do país era colocada na mesa, quer dizer, em campo. Em seu livro, o antropólogo aponta possíveis pistas para a influência dessa nova forma de organização entre os boleiros, como “os comitês de fábrica na Rússia, em 1917, os conselhos operários da Hungria, em 1956, ou mesmo a recusa libertária de qualquer forma de autoridade inspirada a partir de maio de 1968”.

Os jogadores de futebol decidiram lutar para redefinir “as possibilidades de ser atleta”, abrindo caminho para conexões com movimentos sociais, culturais e políticos. Abaixo, um bate-bola com Florenzano:

Brasil de Fato – Por que um palmeirense garimpa a história política do país por meio de um movimento surgido no Corinthians?

José Paulo Florenzano - Comecei com uma pesquisa inicial de mestrado que tratava da rebeldia no futebol brasileiro, sobretudo centrada na luta do Afonsinho pelo passe livre [através do qual o atleta tem o direito sobre sua própria “força de trabalho”, e não o clube ou empresário], entre outras coisas, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Daí, por sugestão da antropóloga Márcia Regina da Costa, surgiu a experiência da Democracia Corinthiana, um desdobramento lógico daquela pesquisa inicial que se mostrava como uma alternativa ao modelo hegemônico no futebol brasileiro. Eu sou um torcedor do Palmeiras que, de repente, por circunstâncias da vida acadêmica, me vi diante de um objeto de estudo que se identificava com o arqui-adversário. Acho que acabou sendo um bom encontro, porque me deu um distanciamento crítico ainda maior.

Qual foi o peso dessa ruptura provocada por jogadores como Sócrates, Zenon , Casagrande e Wladimir, entre outros, dentro da sociedade brasileira naquela época?

A Democracia Corinthiana se constitui num movimento que incomoda, perturba, não só o regime militar, mas de um modo geral, o pensamento conservador do país. Isso foi celebrado como uma mudança de postura do atleta brasileiro; o engajamento dos jogadores do Corinthians no movimento das “Diretas Já”. Convém assinalar que, na verdade, esse engajamento antecede o movimento da Democracia Corinthiana e, se você quiser encontrar um marco nesse processo, para não recuar tanto no tempo e resgatar o Afonsinho, temos a entrevista do José Reinaldo de Lima, o Reinaldo, ex-centroavante do Atlético Mineiro, ao jornal de oposição ao regime civil-militar, “O Movimento”. Aí, o Reinaldo já reivindicava a convocação de uma Assembleia Constituinte, a eleição direta para Presidente da República, enfim, uma série de conquistas democráticas.

Isso foi em que ano?

Em 1978.

E o impacto, no mundo esportivo, dessa participação dos jogadores unidos a setores populares? Houve adesão de jogadores de outros clubes? O Afonsinho era de qual time?

Ele atuou em várias equipes. Jogou no Botafogo, no Vasco, no Fluminense. Aqui em São Paulo, ele jogou no Santos. Mas a tua questão é exatamente o objeto de análise do livro. A Democracia Corinthiana não é uma ilha num mar de apatia e alienação, como se costuma pensar no universo do futebol. Pelo contrário, ela se insere numa longa tradição de luta, de autonomia do atleta brasileiro, que remonta aos grandes times da década de 1960. Então, eu procuro estabelecer o elo entre a Academia do Palmeiras dos anos 1960, a seleção brasileira de 1970, o Flamengo do Zico, o Atlético do Reinaldo, e a Portuguesa do Mário Travaglini, antes de ele se transferir para o Corinthians. Havia o “Trem da alegria”, criado pelo Afonsinho, que era uma ideia que lembrava muito o sistema de cooperativa. Mas é a Democracia Corinthiana que retoma, elabora e aprofunda a tradição de autonomia, num contexto revolucionário da sociedade brasileira. Entre 1978 e 1984, tomando os marcos da onda grevista na região do ABC e a campanha das Diretas Já, nós temos uma pluralidade de sujeitos coletivos que entram em cena, dentro do futebol e fora dele, para colocar em xeque as estruturas autoritárias de poder; seja na fábrica, seja no futebol, em todos os espaços.

O que era o “Trem da alegria”?

Foi uma experiência fora do circuito profissional. O Afonsinho reunia atletas que estavam desempregados ou sem espaço nos grandes clubes e montava um time que saía excursionando pelo interior do Rio de Janeiro e por outros estados. De trem, daí o nome “Trem da alegria”. E havia a proposta de repartir igualitariamente o dinheiro arrecadado. Então, é a auto-gestão no Corinthians, a cooperativa do “Trem da alegria”, a proposta de co-gestão que surge no Santos. São inúmeras as experiências nesse contexto. É a “República do Futebol”, e, dentro dela, se destaca a Democracia Corinthiana.

Como todo esse movimento se reflete nos dias de hoje?

De um determinado ponto de vista, o atleta adquiriu uma consciência maior a respeito de seu valor, digamos, de não se deixar explorar economicamente tão facilmente pelos dirigentes. Por outro lado, me parece que existe, inegavelmente, um retrocesso em relação àquilo que foi conquistado naquele momento. Esse refluxo se explica pela hegemonia do conceito de “futebol empresa”, da redução do futebol ao valor econômico, como se fosse o único valor em jogo dentro do futebol.

Esse é um forte limite para práticas libertárias do futebol?

A imposição desse modelo implica necessariamente o recuo das práticas de liberdade. E aqui, nos tocamos com o que se constitui na contradição maior da Democracia Corinthiana, porque ela abrigava simultaneamente dois projetos antagônicos entre si. Ela busca se legitimar, para o ponto de vista da direção do clube, como uma proposta de profissionalização do Corinthians, de implantação do pensamento empresarial no futebol. Encontramos esse discurso na fala do Sócrates, do Adílson Monteiro Alves, do próprio Wladimir. Ao mesmo tempo, a Democracia Corinthiana se lança na experiência radical de democracia direta, que não se concilia com esse projeto empresarial. Ela vai se debater dentro desses dois modelos. É interessante a experiência do Corinthians porque ela embute essa disputa entre a ideia de um futebol marcada por essas práticas de liberdade e, ao mesmo tempo, daquilo que se tornou hegemônico logo em seguida, o modelo empresarial.

Antes de jogos, alguns jogadores bebiam e fumavam. Isso não é prejudicial para a saúde do esportista e mesmo para sua imagem diante de seu torcedor?

É inconciliável exercer tal profissão com um estilo de vida mais boêmio à medida que nós aceitamos, sem crítica, o espaço que a medicina ocupou no futebol. O que não tem nada de natural, evidente e inquestionável. Pelo contrário, é fruto de um jogo de poder que hipertrofiou a importância da preparação física em detrimento de outras possibilidades de desenvolvimento do futebol. A Democracia Corintiana coloca em xeque a própria ideia de uma preparação física onipotente no futebol. Digamos que o movimento reintroduz a ideia do “Ginasium Grego”, que consistia exatamente em equilibrar os exercícios do corpo com os exercícios da alma. Não me parece contraditório que a Democracia Corinthiana tenha revelado essa face mais dionisíaca. Ela estava presente nos debates do Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo e Diadema, estava presente no TUCA, nas discussões com estudantes universitários, prestava solidariedade ao acampamento de desempregados no parque do Ibirapuera, mas também subia ao palco da Rita Lee, para cantar “Os Jardins da Babilônia”. Ela percorria o circuito boêmio porque ela também se alimentava desse debate com poetas, intelectuais e músicos.

Qual seria a reação desses jogadores progressistas do passado, à semelhança de Afonsinho e do grupo da Democracia Corinthiana, diante da elitização do futebol que ocorre hoje, dos altos preços dos ingressos?

Tanto o Afonsinho quanto o Reinaldo e o Wladimir, durante suas carreiras, estavam muito atentos aos espaços concedidos ao torcedor, sobretudo o proveniente das classes populares. Sempre houve a preocupação com o aumento dos preços dos ingressos, com que estes estivessem ao alcance desse torcedor. Mais ainda: que ele participasse de alguma maneira do governo do futebol no país. Isso se perde hoje e há uma aceitação generalizada, como se fosse algo inevitável desse processo de elitização. Não tem nada de moderno nessa história. No Brasil, modernizar excluindo as classes populares é algo muito antigo, atrasado, e nós estamos repetindo essa experiência.

E a violência entre as torcidas acaba sendo um argumento para que ocorra isso.

Uma história que precisa ser recuperada é exatamente a politização das torcidas durante o processo de redemocratização da sociedade brasileira. A associação que existe hoje entre torcida organizada e violência é, em grande parte, fruto de uma conjuntura que bloqueou os canais de participação desses setores no futebol. Nada impede também que estas torcidas se transformem, adquiram consciência, e comecem, então, a pautar a sua conduta por meio de outras práticas que não o exercício da violência. Essa é uma questão. Outra é um cuidado muito grande que temos que ter em associar a violência no estádio com classe social, porque muitos integrantes das torcidas organizadas são de classe média alta e, se aceitarmos esse determinismo sociológico, justificaremos a exclusão desses grupos. Nada justifica a elitização, nem sequer mantermos no país os grandes jogadores, porque, se o preço a pagar for esse, não vale a pena.

E a Copa do Mundo no Brasil, deve trazer mais benefícios que malefícios para a sociedade brasileira? Será que o patriotismo recorrente das Copas servirá, dessa vez, para refletirmos mais a fundo sobre a nossa sociedade?

O futebol é indústria, gera empregos. O Brasil teria que ir mais a fundo nessa possibilidade de utilizar o futebol como instrumento, não só de inclusão social, mas também de construção da cidadania, de geração de emprego. Por esse caminho, não vejo nenhum problema, pelo contrário, é uma possibilidade de atrair investimentos e assim por diante. A questão que preocupa a todos é exatamente a apropriação do evento por determinados grupos e todo um histórico que envolve a realização de grandes eventos esportivos no país: erros de planejamento, desvios de dinheiro. É esse o dilema. Ao mesmo tempo, a Copa pode ser uma oportunidade em vários aspectos envolvendo o futebol e para na construção da nossa maneira de pensar a sociedade brasileira através do futebol.

Entrevista retirada da Agência Brasil de Fato

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